quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Narciso I

Eu, que fui humanamente humano
Mas não fingi
Mas não vesti a máscara de sorriso hipócrita
Eu, que tive todos os traços da face expostos
E fotográfados no momento fúnebre do sofrimento
Para serem reproduzidos nas galerias
Das galerias para as capas das revistas
E ser famoso1
E limpar com o rosto banheiro e cozinha

Eu, que não interpretei outra personagem
Senão a mim próprio
Minha própria ganância
Minha própria vaidade debuxada no palco
Em farsa e drama
Afogada na causalidade da classe média
"Meu rostinho fotogênico"
Brasão do escudo dos eleitos
Repetindo os mesmos, tristes périplos2

Eu, que estrapolei as linhas da parábola
E ascendi ao mito
E me tornei infame
Cujo nome tornou-se impronunciável nas casas de família
E as donzelas (se ainda houvesse) não poderiam citar
Que é temido até entre as cachorras do baile funk3
Ridicularizado pela inteligência estéril do alto-clero cult4
Aquele-que-não-deve-ser-nomeado
Concatenador de antagonismo
O gatilho dialético 

Eu, que fui terrivelmente trágico
Que encarnei nos enunciados do não dito
O epicentro que fatia a censura
A inclusão digital do pão-e-circ(uit)o5
Democratização dos meios de comunicação pela página do B.B.B
"Plin-plin, a gente se vê por aqui"6
O arrepio na espinha do pudor
Os gemidos entredentes da castidade

Eu, que irremediavelmente me embriago para dizer a verdade
Que sou feito de carne e sou quente
Cujo hospício não barra e não basta
Eu, que despensei todas as regras
E excedi as medidas
Da arte pela arte da arte pela arte da arte
Sem vida 7
A estátua sem contraste, irrelevante e chapada
A cor de mijo dos países ascendentes
In Vitro, In Utero
Dos laboratórios de Lênin e Wall Street8
Eu, que me assumi Polímero
O perverso Deus do Fogo
Dilatador de limites

Procurei em incessante jornada
O ás do terceiro sexo9
O ás do terceiro mundo
O terceiro milênio
Para enfim cair prostrado ante a grandiosidade do poema canônico
Perfeito, simétrico e harmônico
"Nunca teve rugas ou ficou doente"
Eu, que caí prostrado ante a grandiosidade do poema desfigurado
E quis o defeito, o assimétrico, as presas do lobo
Que trouxe o martelo de Thor para inaugurar a Era de Peixes10
Os filhos marcados pelo sinal da Fênix
Carne nua e crua

Eu que sou galho da genealogia de Baal
O cromossomo de Dionísio
O sangue reprodutivo das massas
Os campos de concentração do F.E.M.A11
O eterno retorno niilista
A servidão atiçando o juízo

Eu, que fui estupidamente humano
Procurei desvairado outro humano
A me perder em seus braços
A sonegar por conforto
E só soube a desgostos
E só tangia o inverno
E só ganhei asas nas entranhas do precipício12

Um falo de Sol, sustenido e sozinho
Eu, que não tive preconceitos
Que cuspi e comi no prato dos mecenas
Os caridosos amolando e esmolando labuta 13
Os patrocinadores do verbo e porra nenhuma
Os fileiras de Ícaros, que elevam o corpo por amor
Mas a um preço justo
Mas não sem perder as asas

Eu, que jamais desisti do outro
Mesmo tão distante do outro
Mesmo os infiéis de tantos
Os que cheiravam lixo e excremento 14
Eu, circuncidado nas periferias do burgo
Mas ávido por conforto
Mais humano, mais ossudo

Consumido pela aridez das noites
E as madrugadas enlatadas na garganta
Junto aos congelados, os colírios e os corantes15
Eu, de olheiras profundas
De programações noturnas
De bico de coruja
Trago o lábio sangrando pelas veredas
O veneno negro de beijos não dados

Eu, que quis simplesmente ser chave
A combinar o cadeado de outras línguas
E talvez tecer dedos
Como a teia de outros dedos
Como a dança da solidão 16
Mas soube manchar vermelha
A bandeira verde-e-rosa da gafieira

Eu, que escrevi meu testamento na sarjeta
E assisti profecias pelo buraco na fechadura17,18
O mistério incontrolável da vida
A natalidade pascal da China
Eu, que sou caótico como a encarnação do futuro
Irracional como os Deuses do porvir
A Divindade dotada de sexo
O poema sedentário
O sexto sentido
A constelação antropofágica

Eu, que fui humanamente amargo
Que bebi do cálice de espinhos
Que marchei sem medo rumo ao pecado
Para hastear a bandeira do conflito
E ver os inimigos aliados
Imprapriamente oposto
Avesso, inverso e vago

Eu, que não tenho rosto...19

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Volver a los 17

Playlist para leitura

I

Quando te vejo primeiro eu fico nervoso, depois dou risada e acho tudo meio irônico porque eu percebo que as pessoas não envelhecem, que passam os anos e a gente se desilude horrores e sofre e percebe quanto nossos sonhos são infantis ou que nada é 100% certo ou 100% errado e vai ficando cada vez mais confuso porque quanto mais velho a gente fica menos certeza a gente tem; mas aí é bom porque se pensa que amadureceu e que viveu tudo isso portanto desvendou o mistério da vida mesmo ao custo de muitas quedas e agora se está pronto para não temer o sofrimento e quando a gente não teme o sofrimento ele não dói. Mas no fim, lá no fundo do fundo, nada disso é verdade porque criamos muros bem altos e grades pontiagudas para nos protegermos e pensarmos que não temos medo porque estamos completamente apavorados e de vez em quando a gente é até feliz porque ficamos tão blindados que conseguimos pensar que existe um sentido cósmico ou alguma espécie de destino no sofrimento da gente e mais absurdo ainda, acreditar nisso.

Mas aí eu te vejo e me pego de novo com 17 anos e a barriga fica às voltas com as borboletas e eu me sinto nervoso e fico pensando nas horas mais insuspeitas do dia onde você está ou o quê você está fazendo, como por exemplo quando alguém fala em margaridas ou quando o motorista do ônibus queima a parada. Voltam todos aqueles sintomas que nos tornam patéticos como dormir agarrado ao travesseiro pensando que é você ou passar horas imaginando conversas que nós nunca teremos porque você mesmo sem saber e mesmo sem ter feito nada para isso derrubou meus muros e atravessou as grades pontiagudas e de repente lá estava eu de novo quase acreditando que é possível apanhar os sonhos apenas para apreender de novo que os sonhos sempre escapam antes que possamos apanhá-los e toda a lógica que construímos para nos protegermos uns dos outros ao custo de vários cabelos brancos e artrites e terríveis visitas ao dentista é muito mas muito frágil mesmo.

É como na música de Mercedes Sosa, que tem aquele vozeirão que parece ecoar por dentro, em que ela fala dos ciclos da vida como Alfa, Beta, Omega, e que esses ciclos se sucedem para além do cosmos e do caos assim como as letras do alfabeto. Depois ela fala de pedras, musgo e de um mosquito, desses de velório e eu sei que essas coisas não fazem muito sentido: Pedra, musgo, mosquito, mas elas me dão uma saudade tão grande que eu fumo um cigarro atrás do outro até o filtro e depois me sinto culpado e lembro dos meus dentes amarelos e do meu mau hálito porque eu não sei se quero coisas loucas assim como te encher de beijos ou fumar um cigarro atrás do outro até o filtro sonhando com coisas loucas assim como te encher de beijos.

Nessas horas você ouve todo tipo de conselho ridículo e pensa em dar um tempo porque o tempo cura mas o tempo não cara nada o tempo mata e na verdade é isso: eu queria te matar por dentro para que o espelho se quebrasse e sua imagem surgisse de frente não refletida assim como uma ilusão ou uma gaivota.

Portanto eu deixo o tempo passar isolado enquanto escrevo loucuras em folhas de papel, registro miudezas como a queda das folhas e a trajetória das formigas em minha máquina fotográfica e espero as fotos saírem do negativo para luz do papel embebido em sal e prata e no mesmo instante que a imagem aparece ali fixada e estática eu percebo que o tempo não passa porque as formigas continuam sua trajetória e uma folha cairá depois da folha indefinidamente e então desconfio que não importa quantas vezes o tempo te mate depois da tua morte você morrerá de novo e de novo cada vez mais viva nas formigas e nas folhas e nas loucuras que repetidamente escrevo sobre o papel como o garoto de 17 anos que manda um recadinho para o colega de turma na mesa ao lado.

Me disseram ontem que Mercedes morreu e eu não sabia e pensei como ela pode ter morrido e chorei litros ouvindo seus discos e pensando em morrer não porque eu seja suicida mas porque quando Mercedes cantava era tua voz que eu ouvia não que a voz dela parecesse com a sua que mais parece um graveto mas eu ouvia na voz dela todas as coisas que não morrem porque eu não morro e parece que tudo se perpetua em nós.

Mesmo que você não tenha nada a ver com isso e eu jamais vá dizer qualquer dessas coisas para você ou mesmo coisas piegas como por exemplo eu te amo até porque eu não diria isso para ninguém eu já sou velho demais para esses arroubos da juventude eu tenho na pele todas as chagas do vício uns até diriam que eu sou ranzinza é impossível para mim amar assim sem cinismo ou ironia ou sem querer mesmo despedaçar a pessoa amada não importa se eu penso em você noite e dia até mesmo enquanto frito um ovo é tua presença ao meu lado que imagino mas isso não significa nada porque eu sou negro e esse sofrimento é a única coisa que dá sentido a minha vida e por isso é lógico que eu não te amo porque eu sou apenas um garoto de 17 anos não importa quantos anos eu tenha e eu não sei o que é amor.


De: Caio Fernando Abreu1,
Psicografado por Diogo Marcos Testa, 01 de outubro de 2010