quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Narciso I

Eu, que fui humanamente humano
Mas não fingi
Mas não vesti a máscara de sorriso hipócrita
Eu, que tive todos os traços da face expostos
E fotográfados no momento fúnebre do sofrimento
Para serem reproduzidos nas galerias
Das galerias para as capas das revistas
E ser famoso1
E limpar com o rosto banheiro e cozinha

Eu, que não interpretei outra personagem
Senão a mim próprio
Minha própria ganância
Minha própria vaidade debuxada no palco
Em farsa e drama
Afogada na causalidade da classe média
"Meu rostinho fotogênico"
Brasão do escudo dos eleitos
Repetindo os mesmos, tristes périplos2

Eu, que estrapolei as linhas da parábola
E ascendi ao mito
E me tornei infame
Cujo nome tornou-se impronunciável nas casas de família
E as donzelas (se ainda houvesse) não poderiam citar
Que é temido até entre as cachorras do baile funk3
Ridicularizado pela inteligência estéril do alto-clero cult4
Aquele-que-não-deve-ser-nomeado
Concatenador de antagonismo
O gatilho dialético 

Eu, que fui terrivelmente trágico
Que encarnei nos enunciados do não dito
O epicentro que fatia a censura
A inclusão digital do pão-e-circ(uit)o5
Democratização dos meios de comunicação pela página do B.B.B
"Plin-plin, a gente se vê por aqui"6
O arrepio na espinha do pudor
Os gemidos entredentes da castidade

Eu, que irremediavelmente me embriago para dizer a verdade
Que sou feito de carne e sou quente
Cujo hospício não barra e não basta
Eu, que despensei todas as regras
E excedi as medidas
Da arte pela arte da arte pela arte da arte
Sem vida 7
A estátua sem contraste, irrelevante e chapada
A cor de mijo dos países ascendentes
In Vitro, In Utero
Dos laboratórios de Lênin e Wall Street8
Eu, que me assumi Polímero
O perverso Deus do Fogo
Dilatador de limites

Procurei em incessante jornada
O ás do terceiro sexo9
O ás do terceiro mundo
O terceiro milênio
Para enfim cair prostrado ante a grandiosidade do poema canônico
Perfeito, simétrico e harmônico
"Nunca teve rugas ou ficou doente"
Eu, que caí prostrado ante a grandiosidade do poema desfigurado
E quis o defeito, o assimétrico, as presas do lobo
Que trouxe o martelo de Thor para inaugurar a Era de Peixes10
Os filhos marcados pelo sinal da Fênix
Carne nua e crua

Eu que sou galho da genealogia de Baal
O cromossomo de Dionísio
O sangue reprodutivo das massas
Os campos de concentração do F.E.M.A11
O eterno retorno niilista
A servidão atiçando o juízo

Eu, que fui estupidamente humano
Procurei desvairado outro humano
A me perder em seus braços
A sonegar por conforto
E só soube a desgostos
E só tangia o inverno
E só ganhei asas nas entranhas do precipício12

Um falo de Sol, sustenido e sozinho
Eu, que não tive preconceitos
Que cuspi e comi no prato dos mecenas
Os caridosos amolando e esmolando labuta 13
Os patrocinadores do verbo e porra nenhuma
Os fileiras de Ícaros, que elevam o corpo por amor
Mas a um preço justo
Mas não sem perder as asas

Eu, que jamais desisti do outro
Mesmo tão distante do outro
Mesmo os infiéis de tantos
Os que cheiravam lixo e excremento 14
Eu, circuncidado nas periferias do burgo
Mas ávido por conforto
Mais humano, mais ossudo

Consumido pela aridez das noites
E as madrugadas enlatadas na garganta
Junto aos congelados, os colírios e os corantes15
Eu, de olheiras profundas
De programações noturnas
De bico de coruja
Trago o lábio sangrando pelas veredas
O veneno negro de beijos não dados

Eu, que quis simplesmente ser chave
A combinar o cadeado de outras línguas
E talvez tecer dedos
Como a teia de outros dedos
Como a dança da solidão 16
Mas soube manchar vermelha
A bandeira verde-e-rosa da gafieira

Eu, que escrevi meu testamento na sarjeta
E assisti profecias pelo buraco na fechadura17,18
O mistério incontrolável da vida
A natalidade pascal da China
Eu, que sou caótico como a encarnação do futuro
Irracional como os Deuses do porvir
A Divindade dotada de sexo
O poema sedentário
O sexto sentido
A constelação antropofágica

Eu, que fui humanamente amargo
Que bebi do cálice de espinhos
Que marchei sem medo rumo ao pecado
Para hastear a bandeira do conflito
E ver os inimigos aliados
Imprapriamente oposto
Avesso, inverso e vago

Eu, que não tenho rosto...19

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Volver a los 17

Playlist para leitura

I

Quando te vejo primeiro eu fico nervoso, depois dou risada e acho tudo meio irônico porque eu percebo que as pessoas não envelhecem, que passam os anos e a gente se desilude horrores e sofre e percebe quanto nossos sonhos são infantis ou que nada é 100% certo ou 100% errado e vai ficando cada vez mais confuso porque quanto mais velho a gente fica menos certeza a gente tem; mas aí é bom porque se pensa que amadureceu e que viveu tudo isso portanto desvendou o mistério da vida mesmo ao custo de muitas quedas e agora se está pronto para não temer o sofrimento e quando a gente não teme o sofrimento ele não dói. Mas no fim, lá no fundo do fundo, nada disso é verdade porque criamos muros bem altos e grades pontiagudas para nos protegermos e pensarmos que não temos medo porque estamos completamente apavorados e de vez em quando a gente é até feliz porque ficamos tão blindados que conseguimos pensar que existe um sentido cósmico ou alguma espécie de destino no sofrimento da gente e mais absurdo ainda, acreditar nisso.

Mas aí eu te vejo e me pego de novo com 17 anos e a barriga fica às voltas com as borboletas e eu me sinto nervoso e fico pensando nas horas mais insuspeitas do dia onde você está ou o quê você está fazendo, como por exemplo quando alguém fala em margaridas ou quando o motorista do ônibus queima a parada. Voltam todos aqueles sintomas que nos tornam patéticos como dormir agarrado ao travesseiro pensando que é você ou passar horas imaginando conversas que nós nunca teremos porque você mesmo sem saber e mesmo sem ter feito nada para isso derrubou meus muros e atravessou as grades pontiagudas e de repente lá estava eu de novo quase acreditando que é possível apanhar os sonhos apenas para apreender de novo que os sonhos sempre escapam antes que possamos apanhá-los e toda a lógica que construímos para nos protegermos uns dos outros ao custo de vários cabelos brancos e artrites e terríveis visitas ao dentista é muito mas muito frágil mesmo.

É como na música de Mercedes Sosa, que tem aquele vozeirão que parece ecoar por dentro, em que ela fala dos ciclos da vida como Alfa, Beta, Omega, e que esses ciclos se sucedem para além do cosmos e do caos assim como as letras do alfabeto. Depois ela fala de pedras, musgo e de um mosquito, desses de velório e eu sei que essas coisas não fazem muito sentido: Pedra, musgo, mosquito, mas elas me dão uma saudade tão grande que eu fumo um cigarro atrás do outro até o filtro e depois me sinto culpado e lembro dos meus dentes amarelos e do meu mau hálito porque eu não sei se quero coisas loucas assim como te encher de beijos ou fumar um cigarro atrás do outro até o filtro sonhando com coisas loucas assim como te encher de beijos.

Nessas horas você ouve todo tipo de conselho ridículo e pensa em dar um tempo porque o tempo cura mas o tempo não cara nada o tempo mata e na verdade é isso: eu queria te matar por dentro para que o espelho se quebrasse e sua imagem surgisse de frente não refletida assim como uma ilusão ou uma gaivota.

Portanto eu deixo o tempo passar isolado enquanto escrevo loucuras em folhas de papel, registro miudezas como a queda das folhas e a trajetória das formigas em minha máquina fotográfica e espero as fotos saírem do negativo para luz do papel embebido em sal e prata e no mesmo instante que a imagem aparece ali fixada e estática eu percebo que o tempo não passa porque as formigas continuam sua trajetória e uma folha cairá depois da folha indefinidamente e então desconfio que não importa quantas vezes o tempo te mate depois da tua morte você morrerá de novo e de novo cada vez mais viva nas formigas e nas folhas e nas loucuras que repetidamente escrevo sobre o papel como o garoto de 17 anos que manda um recadinho para o colega de turma na mesa ao lado.

Me disseram ontem que Mercedes morreu e eu não sabia e pensei como ela pode ter morrido e chorei litros ouvindo seus discos e pensando em morrer não porque eu seja suicida mas porque quando Mercedes cantava era tua voz que eu ouvia não que a voz dela parecesse com a sua que mais parece um graveto mas eu ouvia na voz dela todas as coisas que não morrem porque eu não morro e parece que tudo se perpetua em nós.

Mesmo que você não tenha nada a ver com isso e eu jamais vá dizer qualquer dessas coisas para você ou mesmo coisas piegas como por exemplo eu te amo até porque eu não diria isso para ninguém eu já sou velho demais para esses arroubos da juventude eu tenho na pele todas as chagas do vício uns até diriam que eu sou ranzinza é impossível para mim amar assim sem cinismo ou ironia ou sem querer mesmo despedaçar a pessoa amada não importa se eu penso em você noite e dia até mesmo enquanto frito um ovo é tua presença ao meu lado que imagino mas isso não significa nada porque eu sou negro e esse sofrimento é a única coisa que dá sentido a minha vida e por isso é lógico que eu não te amo porque eu sou apenas um garoto de 17 anos não importa quantos anos eu tenha e eu não sei o que é amor.


De: Caio Fernando Abreu1,
Psicografado por Diogo Marcos Testa, 01 de outubro de 2010

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Branco

Como é possivel
Olhar para o céu e sentir prazer em vê-lo com nuvens brancas
Porém ficar triste por não haver nada além disso
Saber que ele está iluminado
Mesmo que o Sol não tenha aparecido

Um grande tapete branco
Que traz uma chuva fina
E um vento frio
Que apesar dos casacos
Camisas, pêlos e gorduras que trago em meu corpo
Esse frio entra de alguma forma
Na minha pele
Ele me congela por dentro aos poucos
Dedos
Lingua
Olhos
Cabelo

A única peculiaridade é que eu não me importo
Não faz diferença
Eu desde o princípio quis isso
Mesmo que seja afirmado o contrário
Apenas espero que o céu se abra de novo


Autor: Henrique Marcos Testa,
O gostoso do meu irmão, vou até botar uma foto dele fazendo aquele negócio especial que só ele sabe fazer  desse jeitinho pras gatenhas babarem na gravata:





domingo, 19 de setembro de 2010

Poema aos olhos da amada

À Thaís Sanches
O ciclo das águas douradas
Escorridas do sumo da ambrósia1:
Consumida, excretada, fertilizada
Colhida, fermentada, novamente servida
E consumida bem gelada

Um friozinho na barriga
Reconhecer os amigos no olhar
O desejo do encontro
Entre tantos cruzamentos
Entre tantas avenidas2
Na mais sonora solidão do trânsito3

Os caixões movidos a álcool e gasolina
Enterrados no engarrafamento
Escutando o sinal fechado4
Eu vou bem e você, como vai?

Não desconfiam a metáfora de nossas lápides
Penduradas na lataria:
Um brasão em brasas, escudo e marca do consumo
E uma placa de identificação "KFZ-1348"5

A certidão para nascer6 e morrer7
Entre tantos fantasmas sem rosto
Narcisos ao oposto
Sem endereço nem conta à pagar
Filhos legítimos do tempo presente
Amamentados nas tetas de uma cidadânia expressa
No berço esplêndido do estado paternalista

A todos aqueles que não sabem o que foram
Nem se importam com o que serão
A todos aqueles que quando deixarem de ser
O que são
Nem mais foram, nem mais serão
Não são

Essa diferença é breve e persistente como os fios do bixo da ceda
Mas é toda a diferença
A única que interessa
Sem ela não se separaria
O credo da crença
Nem a pluma se distinguiria da pena

E foi leve como a pluma e livre como a pena
Que nossos olhos se encontraram entre tantos cruzamentos
A sete palmos de tráfego8
Pelas janelas de nossas sepulturas
"Qual a música que tanto você escuta no rádio?"
Entre o silêncio de nossos carros
Na trajetória de nossos olhos

O sinal abriu, a procissão9 segue
E entra o mistério das buzinas
Você dobra a esquina e eu sigo em frente
Eu dobro a vida
Fantasminhas me pedem dinheiro
E eu me dobro10 em dívidas11

Estaciono no bar
Conformista, burguês, classe-média, alienado
Pastiche de clichês e rótulos
Feliz pelo minuto e meio de comercial
Viril como uma carteira de cigarros12

Desculpe meu bem
Eu sei que sou meio prolixo
Mas é que tudo anda tão sintético
Eu queria falar de teus olhos
Só deles, meu bem13


AVISO IMPORTANTE: Quarta-feira, dia 21/09/10, publicarei aqui no blog o primeiro poema escrito por meu irmão, Henrique Marcos Testa, chamado "Branco"... Só pra ser coruja mesmo. Abraços.

sábado, 11 de setembro de 2010

Lilith

Hoje a noite está ensanguentada
Dá pra sentir na barriga
No cavalo selvagem estancado do outro lado da rua
Em sua crina espessa e negra
Nos lábios cruéis do quarto crescente
No rubor das nuvens violentadas pelo vento

Nix perdeu quaisquer escrúpulos
E desmanchou-se em assassínios
É o bicho de sete cabeças
Um bico de seio expiado do decote
O Cheiro do ralo cortando os barracos de D. Helder
"Que só se voltava ao céu a ver se chovia"
São os anjos pornográficos no buraco da fechadura

O sereno da noite foi parar nas macas do S.A.M.U
Chapado de analgésicos, anorexo da alma
Cada vez mais fina, o estreito vão dos desejos
O boca larga, amor, em crises de bulimia
A igreja de todos os bêbados
Duchamp e o sino das descargas
O gosto amargo da hóstia que sai

Nott hoje não está silenciosa
O grito de Munch além do Porto
As garotas da Guernica se espalham
Pelas esquinas do Cais
O Bacurau voa rasante a procura dos Gabirus
O cio dos gatos é mais alto que o sono
Mais denso que o sonho
E muito além do aceitável

Os dentes libidinosos da lua
Posam de alegoria para o bloco
Dos Tentadores de Sto. Antão
Animalizando os indigentes, os promíscuos
Despetalando a flora da noite
Espiralando a boca de baixo
Vermelha e quente
Fungando rente como labareda
O cangote dos quadros de Bosch

Com seus dedos negros
Levou a mocidade para aventuras
E deixou os entes órfãos
Fartou-se das lágrimas de melancolia
Das mães burguesas
E dos pais condescendentes
Nas ruínas da família liberal
Pousou suas costas e cochilou sem culpa
Sem dogma
Sem Deus

Entre gemidos, Lilith dilatou o tempo
Entre uivos de gozo, engoliu Cronos
Em seu sexo farto e infindo
Afundou as horas em suas pernas
E não se permitiu jamais gozar
Assim o dia não raiou
Enquanto a gargalhada metálica dos satélites
Era perpetuada de ouvido a ouvido
Onde o falo de Apolo não alcança
E a lança de Adão prevarica

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Giacomo de Marco Testa

Permita que eu seja teu amante
E não teu amado
Para que tu gozes a mocidade antes
Que os cabelos embranqueçam

E eu mantenha teu sangue caliente
Antes que o inverno desabroche em varizes
E este fruto atinja a maturidade
Permita que eu regue esta semente
Seja a água que absorve teu  caule

Permita que eu não seja teu redento
E sim o teu pecado
Que eu desperte no teu peito de donzela
Os deleites do momento
A vulgaridade que tempera a carne
O ser por inteiro que atravessa o tempo presente

Permita que eu seja teu amigo
E não teu namorado
Que eu tenha a nobreza dos menestréis
Das cantigas do passado
E te entranhe como a musa
Mistifica o inspirado

Que nos unifiquemos sem culpa
Sem o julgo da doutrina
Protegidos nos muros altos
De um castelo isolados lábios
Onde possamos ser livres

Dos outros
Para o outro
E do outro

Permita que eu seja Giacomo Casanova
Ou D. Juan de Marco
Um deslize de menina
Um presente do passado

A certeza que pelo menos uma vez
O amor te desejou completa
O amor te buscou sem trégua
E não deitado, jogado, desleixado
De costas, na cama, ao teu lado

Para nos trancarmos num quarto
Muito além do preconceito
E confessarmos sem medo ou ciúme
As desilusões do amor verdadeiro
Sem deixar de nos amarmos
Quanto mais nós amaremos

Como filhos do mesmo órgão despedaçado
Ou almas gêmeas que caminham
Para o mesmo destino trágico
E se confundem em segredo
Para dividir o mesmo fardo

Permita que eu seja teu amante
E não teu carrasco
Que eu nutra tua lua crescente
E te veja desabrochar saudável
No solo árido do ser amado

Permita que eu provoque tuas espinhas
E não teus calos
Que eu te apresente livros, discos, poetas
Que te desperte sentidos, impulsos, sabores
E não teu desfecho
E não teu estrago



Um poema romântico, que versa sobre o envelhecimento, sobre os remorsos, os desgostos e os sacrifícios que nos custam envelhecer sem envilescer, eis a questão. E ao mesmo tempo safado, devido à minha vocação para amante.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Limite

Onde a faca corta o punho
Uma lágrima furtiva
O primeiro trago
Noites e noites na frente da tela
Assistindo reflexo e estática
Pelo tubo convexo e estético

Entre o real e o imagético
Duas lágrimas furtivas
O segundo trago
As manhãs agarradas ao travesseiro
As madrugadas entaladas na garganta
O gargalo d'água que alaga as casas de Jaboatão

Pela Veneza que é devassa
Três lágrimas salgadas
O terceiro trago
Por todos que choraram Jesus
Sem verter pranto por tantos outros
Apregoados a Cruz

Uma paixão sadomaso pelo Calvário
Um sinal de anjo decaído
Um sempre cair
E flutuar na imensidão do poço
 O poço do fundo do poço do fundo do poço sem fundo
Em que visto a máscara que visto por cima da máscara que visto por cima da máscara
Procurando meus olhos no espelho

Entre o divino e Narciso
Sete lágrimas copiosas
O décimo segundo trago
Um girar até o vértice infindo
A curvatura da aresta
E a elipse da face
Eclipse oculto do rosto de uma humanidade Pan

Onde arrebenta o horizonte
Incontáveis lágrimas sem dor
Não sei mais quantos tragos
Não sei mais quantos foram
Não sei mais quanto posso

Limite

http://www.youtube.com/watch?v=w0heX2tqJEI

Então pessoal, "Limite" foi o poema que fiz para a final da 6ª edição do Recitata, concurso de poesia e performance promovido pela prefeitura do Recife através do G.O.L.E, órgão da secretária de cultura.

Tem algumas coisas especiais nesse texto: Ele segue a proposta do "primeira jornada" sendo um poema de busca e não de constatação, entretanto em seu caso particular a busca foi levada a outro patamar. O poema foi completamente escrito em processo, ou seja, não é algo "que apresentei", mas o caminho encontrado na jornada do "quê apresentar" na en-cruz-ilhada da semana que tive para prepará-lo literária e performáticamente.

O tema do poema, limite, veio de eventos da semana em que compus o poema e da semana anterior. O tema surgiu a partir do próprio Recitata. O concurso permitiu rever amigos do meio literário que há muito não via. Meu reencontro com os malucos literários e essa enxurrada repentina de poesia nos meus sentidos, que andavam afastados dessas loucuras da metáfora, me levaram a perguntas tais "pra quê serve tudo isso?", "o que faz um bom poema, o que o faz especial, relevante, provocativo?".

Ultimamente, para mim, arte não é criação, mas sim traição. Uma ruptura com as idéias estabelecidas pelo senso comum. Como se sabe, todos os idiotas acham que as idéias do senso comum sempre estiveram ali e por isso qualquer coisa diferente delas é "nova".

Estava tão preocupado em romper que quando perguntei-me "mas romper o quê", percebi que estava cego demais em minha ganância para enxergar e ler o mundo.

Essas reflexões somadas a pressão da apresentação eminente dentro de alguns dias me consumiram a tal ponto que faltei à responsabilidade com pessoas queridas que contavam comigo, fui repreendido seriamente e acusado de "não ter limites para o meu ego" e de ser "socialmente antiético".

Milhares de acontecimentos  tomaram vez nessa semana que precedeu a apresentação: A palestra de João Silvério Trevisan "existe literatura homoerótica?", a apresentação da dramaturgia do exercício de conclusão da E.S.T (Escola Sesc de Teatro) e o primeiro recital do Dremelgas literárias com a nova formação.

Isso tudo até quinta, a apresentação seria domingo, faltavam três dias e eu não tinha idéia do que faria. Eu considerava dois temas para o poema final: Um seria "a quarta parede", poema pronto que trata do paradoxo  no prazer egoísta; o outro que considerava era "a queda da máscara", não o poema do post anterior deste blog, mas um homônimo que trataria do problema da identidade composta do homem contemporâneo.

Como se vê, há repetições nos temas que são análogas ao tema do limite, à pergunta "até onde eu vou? qual o tamanho? qual o limite? até onde vai a idividualidade? até onde existe prazer? em que parede esbarra o ego?" porque a mim pareciam esses perguntas todas armadilhas para uma resposta trágica.

A partir de sexta decidi levar essa busca às últimas consequências. Recibi um conselho do poeta Biagio Picorelli, que admiro muito, que disse "faça o poema enquanto você monta a apresentação, não separe as coisas".

Durante as manhãs de sexta, sábado e domingo tivemos na E.S.T oficina de indumentária com a charmosíssima Adriana Vaz, uma paulista corintiana que gosta de chamar os outros de "Darling", como na peça do Vivencial. Pois bem, quando não estava na oficina todas as minhas energias se voltaram para o processo do poema que se chamaria justamente "limite". Assisti a primeira aula sexta de manhã e ouvi Adriana falar sobre a teia de referencialidades que compõe a arte contemporânea, novamente a questão de como a identidade e a abordagem de um argumento caracterizam a arte hoje. Novamente os limites do eu em relação ao espaço, que é uma abstração do outro.

Saí da aula direto para o centro da cidade comprar os materiais da performance. Conforme olhava coisas e mais coisas e mais coisas, ao ver umas cordas penduradas no teto de uma tenda do mercado de S. José tive a visão da metáfora imagética que gostaria de construir para avançar nessa busca por limites em que me engalfinhava.

Do mercado fui para a Universidade Federal me encontrar com Pedro Augusto Correia de Araújo, gostosíssimo amigo que compôs e executou a trilha sonora da apresentação. Ele já mencionara que gostaria de tocar um blues, portanto foi ouvindo o blues tema que ele gostaria de tocar e com os materias comprados que comecei a esboçar o texto sexta à noite, na Federal. Claro que nós não conseguimos nos concentrar muito no ensaio, enquanto ele tocava e eu escrevia, toda hora passava um conhecido, uma gatinha, alguém que nos convidava para um bar. Além choveu.

Não sei separar o que foi ensaio e o que foi farra nesta noite, trabalhamos no poema, paqueramos, bebemos, conversamos com amigos, fizemos rodas de viola, fumamos de tudo.

Quase meia-noite Pedro vai pra casa e eu vou pra casa de Jerônimo, um amigo, que estava com a namorada e uma amiga. Fico até as três da madrugada bebendo e jogando Uno com eles. Daí por diante Jera se fecha com a namorada, a amiga me rejeita e eu termino o resto da noite em claro na rede da sala, olhando nuvens, ouvindo roncos, insetos e ouvios enquanto pensava "Qual o sentido disso tudo? Estou mesmo chegando em algum lugar? Qual o fim da farra? De que tudo isso me serve? E por que não largo, por que não desisto? Por que persisto no vício?"

Saio bem cedinho porque tenho aula sábado de manhã, a tal oficina de indumentária. Chego em casa apenas a tempo de trocar de roupa e comer algo. Fico até as duas da tarde em aula. A apresentação é no dia seguinte, eu já estou a um dia sem dormir e não terminei o texto. Ligo para Pedro e combinámos de nos encontrar na cidade, ao entardecer, para terminar o texto e ensaiar.

Na mesma noite toca num bar Kalouv, www.myspace.com/kalouv, banda de amigos nossos e somos intimados a assistí-los. Chego em casa quatro da tarde, almoço, caio no sofá e durmo.

Acordo já atrasado para meu encontro com Pedro, 18:30, durmi duas horas e meia. Painho insiste que eu fique para jantar antes de sair e eu fico. Falo com Pedro ao telefone e ele ainda não saiu de casa também. Chovia muito no Detran e ele não poderia levar o violão para ensaiarmos debaixo de tanta chuva.

Nesse vem e vai chegamos no pico lá pelas 22h, e Pedro sem o violão para ensaiarmos. A apresentação é no dia seguinte e não tem nada pronto. Mas nem ligamos. Passamos a noite bebendo e cantando e fumando muito com amigos. Eu tenho uma bad terrível numa moça do bar, escrevo um texto para ela e mando pelo garçom. Sou sumariamente ignorado. Uma amiga fica tentando me consolar, outra me esculhamba completamente escarnindo minhas opções sexuais e minhas roupas.

Pedro volta comigo. Vai dormir na minha casa para que possamos terminar a apresenetação e ensaiar. Só que o show do Kalouv termina depois 4h da manhã. Fomos esperar o busão na Agamenon que só passou às 6h depois de muitas aventuras com passarinhos, fiteiros e as demais pessoas da parada.

Chegamos na minha casa às 8:30 da manhã mortos de sono. Minha aula é as 10:00, uma hora e meia. Não dá pra dormir, não dá pra terminar o texto. Pedro capota logo e eu fico na minha rede repetindo pela milhonésima vez as mesmas perguntas, cada vez o limite mais maduro.

Quando levantei da rede para ir à aula não estava nervoso. Me parecia natural que pelo processo que escolhi para desenvolver esse texto, um processo que não se detacha de seu produto, em que o fazer e o feito não se separam. Me pareceu óbvio que o texto só estaria pronto para ser apresentado no próprio momento da apresentação, porque o texto não seria algo escrito que eu repetiria para uma platéia em determinado momento, mas o poema seria o próprio momento, um lugar no tempo e no espaço, dentro de uma vivência maior.

Fui à aula, voltei para casa, Pedro havia tomado todas as cervejas de casa e falava putaria com meu irmão na varanda enquanto dava em cima da vizinha. Sentamos juntos, terminei uma versão do texto, harmonizamos com a música tema, nos preparamos e apresentamos. Decorei o texto no carro a caminho da Torre Malakof e troquei palavras durante o próprio ato de apresentar conforme achei necessário, tudo com muita liberdade.

Isso trouxe ao ato de apresentar o texto uma energia mítica, pela hibris que que a gerou, mística, pelos aspecto insondável de sua existência, religiosa, pois fruto de enorme sacrifício - uma semana escravizado por uma idéia, três noites sem dormir, inúmeras drogas, incontáveis tentativas de relação com o outro frustradas em algum nível de significado - e fé - uma crença inexplicável no propósito de tantas ações superficial e isoladamente inúteis; antropológica, filosofica e social, porque essencialmente humana e fruto de muita reflexão e interação com o meio.

A convergência de todas essas energias puderam transformar aquele momento banal de declamar um texto num instante de amor, de paixão, de extraordinário. Um momento onde a linha que separa os homens dos deuses, seus ideais, pôde ser exposta à todos e redimensionada, dilatada, tensionada, afrouxada.

domingo, 15 de agosto de 2010

A queda da máscara

Me deixou na mão, na palma da mão
Minhas leituras tendenciosas
O futuro esculpido em linhas tortas
Eu dava um jeito de malabarista
E ia enrolando, te enrolando
A ver se terminávamos enroscados
Nos enroscando

Num amor que não pode dar certo
Eu me contorcia a ver nas tuas mãos
Quanto seriam teus netos
Ou se eu seria, talvez, avô

A poesia escondida em carne viva
As linhas sanguínias de nossos olhos vermelhos
Que não choravam
Mas riam e riam e riam
Como se algo valesse a pena ou sacrifício
A ver se o jogo das profecias mantinha nossos dedos unidos
Só mais um cadinho pro fim, que é pro fim
Meu amor, é sempre pro fim
Que nós nos gostamos e queremos

A eterna certeza da partida
Sim, meu bem, eu sempre soube que você partiria
Mas confesso que esperava o fim de um ato, de um quadro
Ou até mesmo uma ceninha entitulada:
"O amor dos que estão destinados a partir"

A compreensão consumista do trágico
Eu sempre soube que você, cortina
Fecharia teu veludo vermelho
E deixaria o palco vazio, as tábuas do tablado
Gemendo de tesão e cio andrógino e solitário

O que eu esperava, meu bem, era o teu espetáculo
Que tu surgisses na luz e declamasse um poema de Lorca
Franja mascarada e curta de Cleopátra
Ou Medusa
E deixada tua deixa que não me deixa nada
Partiria já meio embriaga tropêga na saia florida
Para o obscuro mistério das coxias

O batom vermelho, o lábio curto da orgia
O que não via em minhas profecias loucas
Era o branco, tua estátua impávida e muda
Não era branco do verso, era o branco do mármore gelado
Era a ausência absurda, um fetiche por teus pés de solavanco
Era mesmo um beijo, mas de beijos não se fala
Um segredo úmido entre duas palavras

Era comprimentar desconhecidos na rua
E descobrir quão linda é a inevitável esquisitice
Dos esquisitos porcos deuses cristalinos diamantes
Receber dos indigentes beijouterias de arame
A límpida beleza do prisma caleidoscópico
A energia desconstruída, o fluxo interrompido

Meus gestos de mímico na boca de cena
Despida a máscara, abandonei o rosto de meus Deuses
Nas arquibancadas
E me fiz homem, cara à cara ao tapa de teu branco
De teu múrmurio silencioso e acanhado de coxia
Sim, minha companheira sem amor sem companhia
Eu estava no fogo, no foco
Entreguei à audiência, que dormia e ainda dorme
Uma réplica tresloucada para um diálogo de sombras
E fui o fenômeno mor entre os insígnes
E o lapso sútil entre verdades

Jazz do coração, chá de Alice na toca do Antigo
A loucura muito além da lucidez, azul ou branca
Blusinha Jeans ou cinto de couro vermelho
Uma olhar egípcio delineado e cosmético
Eu fui quem cobriu teu corpo sobre as luzes
E te disse quem era de peito aberto

E não digo mais nada
E não visto mais máscara
E não finjo mais eu

Abertura

Há dois anos, criei o blog www.conselhosdeumpoeta.blogspot.com, com um trabalho de 21, 22 poemas, coisa assim. Publiquei os poemas, um por semana, e fim. O blog serve como livro virtual de um trabalho. Não posto novos textos para preservar a unidade e coesão daquele trabalho. Toda a estética do blog - cores, imagens, tipografia - também foi escolhida para enfatizar os assuntos tratados por aqueles textos.

O "primeira jornada" é algo parecido, mas um pouco diferente. Meu blog para postar textos soltos é o www.desconceito.blogspot.com, que está fechado há uns meses por besteira minha. Isso não significa de forma alguma que parei de escrever, e os textos que tenho escrito, principalmente a partir do segundo semestre de 2010, assim como os textos do "Conselhos", têm coerência e unidade entre si. Por isso decidi dedicar um blog inteiro para eles. Assim, quando cansar desta forma de escrever poemas que tenho exercitado abandone este blog como um fantasma bem delineado e coeso.

Mas então, o que é "A primeira Jornada ao Absoluto"? A palavra Jornada me agradou porque são poemas de viagem. Não falo das viagens geográficas, mas das espirituais que faz o escritor à procura do texto. Da dura empreitada do poeta ao encontro da poesis.

Essa busca me interessou pela natureza dos poemas que vinha escrevendo. Antes da série que apresento neste blog escrevia poemas imaturos, como ainda os são esses que apresentarei aqui, mas cristalinos. Eles encerravam em suas formas e materiais uma impressão estática de minha mocidade. A vivência já estava morta e incinerada em mim. O poema era certo, mesmo quando duvidava era certo, sabia desde a partida onde ficava a linha de chegada.

Quando comecei a escrever os poemas da "Primeira Jornada" não sabia aonde chegaria, apenas desejava escrever daquela forma. Uma condição de processo pareceu unir todos esses textos: uma total falta de maturação das experiências que desencadeariam a poesia. São poemas escritos em sarjetas lá pras tantas da manhã, depois que todos já foram dormir. Ou em paradas de ônibus enquanto se espera o bacurau.

Os poemas deste blog não são cristais, constatações do espírito; mas o próprio processo de sua cristalização, eles são os trabalhos de meu espírito aglutinados e expostos no papel. Portanto, se haverá cristal ou não ao fim varia. Essa questão do produto acabado perde a importância face ao que eu ofereço: Minhas energias, meus caminhos, as minhas impressões de mundo se desenvolvendo, se desdobrando.

Assim, partimos eu, texto e leitor, juntos, de um determinado ponto, até mesmo com uma certa noção de para onde iremos, mas dali para onde realmente vamos, onde encontraremos nossa linha de chegada pouco importa. O que importa é a caminhada, são as curvas e as surpresas que encontraremos pelo caminho e que muitas vezes nos convidarão a mudar de rumo. E desses rumos e curvas ao desconhecido passamos a andar para não sei. E é aí, neste ponto que a poesia finalmente roça no caos, no sagrado, no inexplicável. Finalmente a energia que emana das palavras parece mostrar ao leitor que seu grito é uma luta surda para dar a ver o que ainda não é possível escrever.

Também percebi depois de os olhar com alguma distância, que essa característica de poema mais processo que produto dá a eles uma imaturidade, um excesso que eu poderia muito melhor aproveitar como traço de estilo que rejeitar como vício de mau escritor. Talvez eu seja realmente um mau escritor, mas esses poemas excessivos, exagerados nas imagens, caóticos e por vezes incoerentes, cujos ritmos, rimas e métricas são terrivelmente intuitivos e desleixados - verdadeiro combate de náufrago para não afogar-se - me permitem transmitir a atmosfera de angustias e excessos e bagunças da geração XI, da qual faço parte, e são tão mais coerentes com a minha personalidade que me parecem espelho muito mais fiel do que passamos nessa infinita jornada ao absoluto de cada dia. Em suma, percebi que me sinto muito mais à vontade escrevendo assim.

Quanto ao último nome, "absoluto", por quê? Ele é um nome que me chegou depois e está relacionado à uma temática que pode ser encontrada em todos os poemas, tanto em seus temas quanto em suas formas. Todos os textos, cada um do seu jeito, expõe uma luta pela completude. Imagino que numa sociedade de tantas possibilidades, com tantas  referências e uma complexidade nunca vista de escolhas, a certeza, a sensação de harmonia, de estar integrado por completo ao sistema que o cerca seja impossível. Porém, mesmo que impossível, ela não deixa, de forma alguma, de assombrar nossos sonhos mais intimos.
 
Pronto, dessas viagens todas nasceu o nome "Primeira Jornada ao Abosuto".