terça-feira, 5 de outubro de 2010

Volver a los 17

Playlist para leitura

I

Quando te vejo primeiro eu fico nervoso, depois dou risada e acho tudo meio irônico porque eu percebo que as pessoas não envelhecem, que passam os anos e a gente se desilude horrores e sofre e percebe quanto nossos sonhos são infantis ou que nada é 100% certo ou 100% errado e vai ficando cada vez mais confuso porque quanto mais velho a gente fica menos certeza a gente tem; mas aí é bom porque se pensa que amadureceu e que viveu tudo isso portanto desvendou o mistério da vida mesmo ao custo de muitas quedas e agora se está pronto para não temer o sofrimento e quando a gente não teme o sofrimento ele não dói. Mas no fim, lá no fundo do fundo, nada disso é verdade porque criamos muros bem altos e grades pontiagudas para nos protegermos e pensarmos que não temos medo porque estamos completamente apavorados e de vez em quando a gente é até feliz porque ficamos tão blindados que conseguimos pensar que existe um sentido cósmico ou alguma espécie de destino no sofrimento da gente e mais absurdo ainda, acreditar nisso.

Mas aí eu te vejo e me pego de novo com 17 anos e a barriga fica às voltas com as borboletas e eu me sinto nervoso e fico pensando nas horas mais insuspeitas do dia onde você está ou o quê você está fazendo, como por exemplo quando alguém fala em margaridas ou quando o motorista do ônibus queima a parada. Voltam todos aqueles sintomas que nos tornam patéticos como dormir agarrado ao travesseiro pensando que é você ou passar horas imaginando conversas que nós nunca teremos porque você mesmo sem saber e mesmo sem ter feito nada para isso derrubou meus muros e atravessou as grades pontiagudas e de repente lá estava eu de novo quase acreditando que é possível apanhar os sonhos apenas para apreender de novo que os sonhos sempre escapam antes que possamos apanhá-los e toda a lógica que construímos para nos protegermos uns dos outros ao custo de vários cabelos brancos e artrites e terríveis visitas ao dentista é muito mas muito frágil mesmo.

É como na música de Mercedes Sosa, que tem aquele vozeirão que parece ecoar por dentro, em que ela fala dos ciclos da vida como Alfa, Beta, Omega, e que esses ciclos se sucedem para além do cosmos e do caos assim como as letras do alfabeto. Depois ela fala de pedras, musgo e de um mosquito, desses de velório e eu sei que essas coisas não fazem muito sentido: Pedra, musgo, mosquito, mas elas me dão uma saudade tão grande que eu fumo um cigarro atrás do outro até o filtro e depois me sinto culpado e lembro dos meus dentes amarelos e do meu mau hálito porque eu não sei se quero coisas loucas assim como te encher de beijos ou fumar um cigarro atrás do outro até o filtro sonhando com coisas loucas assim como te encher de beijos.

Nessas horas você ouve todo tipo de conselho ridículo e pensa em dar um tempo porque o tempo cura mas o tempo não cara nada o tempo mata e na verdade é isso: eu queria te matar por dentro para que o espelho se quebrasse e sua imagem surgisse de frente não refletida assim como uma ilusão ou uma gaivota.

Portanto eu deixo o tempo passar isolado enquanto escrevo loucuras em folhas de papel, registro miudezas como a queda das folhas e a trajetória das formigas em minha máquina fotográfica e espero as fotos saírem do negativo para luz do papel embebido em sal e prata e no mesmo instante que a imagem aparece ali fixada e estática eu percebo que o tempo não passa porque as formigas continuam sua trajetória e uma folha cairá depois da folha indefinidamente e então desconfio que não importa quantas vezes o tempo te mate depois da tua morte você morrerá de novo e de novo cada vez mais viva nas formigas e nas folhas e nas loucuras que repetidamente escrevo sobre o papel como o garoto de 17 anos que manda um recadinho para o colega de turma na mesa ao lado.

Me disseram ontem que Mercedes morreu e eu não sabia e pensei como ela pode ter morrido e chorei litros ouvindo seus discos e pensando em morrer não porque eu seja suicida mas porque quando Mercedes cantava era tua voz que eu ouvia não que a voz dela parecesse com a sua que mais parece um graveto mas eu ouvia na voz dela todas as coisas que não morrem porque eu não morro e parece que tudo se perpetua em nós.

Mesmo que você não tenha nada a ver com isso e eu jamais vá dizer qualquer dessas coisas para você ou mesmo coisas piegas como por exemplo eu te amo até porque eu não diria isso para ninguém eu já sou velho demais para esses arroubos da juventude eu tenho na pele todas as chagas do vício uns até diriam que eu sou ranzinza é impossível para mim amar assim sem cinismo ou ironia ou sem querer mesmo despedaçar a pessoa amada não importa se eu penso em você noite e dia até mesmo enquanto frito um ovo é tua presença ao meu lado que imagino mas isso não significa nada porque eu sou negro e esse sofrimento é a única coisa que dá sentido a minha vida e por isso é lógico que eu não te amo porque eu sou apenas um garoto de 17 anos não importa quantos anos eu tenha e eu não sei o que é amor.


De: Caio Fernando Abreu1,
Psicografado por Diogo Marcos Testa, 01 de outubro de 2010

4 comentários:

  1. Puta merda,
    amo...
    Aí depois disso tu queres me deixar sóbria?

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  2. Impossível não parar pra refletir nem que seja por um minuto.
    Botou pra foder, mago, pra foder.

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  3. Assim que vi a 'playlist' lembre de Caio, lindo texto. É uma pena teu narrador não conseguir dizer eu te amo... eu também não consigo...

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